A suíte financeira

Marcelo Ferlin
5 min readJul 8, 2023

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À sombra do vulcão.

Capítulo 1: Madonna e o cônsul

O avião taxiou pela pista molhada até derrapar e por fim estacionar a três metros da faixa de segurança, antes das barreiras de concreto e pneus que separavam a pista do declive, que o povo chamava de barranco. Depois do barranco haveria a via principal do bairro, sempre movimentada. A cidade havia alcançado o aeroporto e agora havia um bairro em torno dele.

O piloto freou no último instante e o cavalo de pau e o choque que percorreu a aeronave receberam as palmas entusiasmadas do cônsul e um discreto grito de “Bravo”, que não entusiasmou a pequena comitiva à bordo. Dois seguranças que pareciam modelos ou chefs, duas camareiras com porte de segurança ou atletas olímpicos, a intérprete, o secretário, o senador reeleito e a jornalista escolhida a dedo para acompanhar o senhor cônsul naquele trecho da excursão.

Os dois seguranças já estavam postados, um à porta lateral e outro à porta dos fundos, o que deixava o cônsul, de pé no meio da aeronave, sem acesso às garrafinhas de bourbon que a companhia aérea havia providenciado. Os óculos escuros pendiam entre o dedo médio e o anelar da mão direita.

- Onde estão as minhas meias, miss G?

- As pretas estão no bolso do casaco, senhor.

- No meu casaco?, perguntou o cônsul conferindo um par de meias brancas no bolso esquerdo do casaco.

O cônsul conseguiu manobrar os óculos da mão direita para a esquerda e retirou o par de meias pretas e limpas do bolso direito. A intérprete fez o sinal para as camareiras ajudarem o cônsul. Tiveram antes de parar de tremer e de se persignarem. Estavam vivas, todos estavam vivos, ninguém havia morrido na aterrissagem. E num dialeto que o cônsul não conseguia compreender, murmuraram entre si que o piloto devia estar mais bêbado que o cônsul.

Para a pequena comitiva que aguardava a chegada do cônsul, a impressão era de que a aeronave parecia mais bêbada que o próprio cônsul. Fato inédito, mais de um comentou e replicou enquanto se esforçavam para não ceder espaço à multidão de jornalistas, fotógrafos, fãs, seguranças e funcionários do aeroporto que aguardavam Madonna finalmente ser convencida a deixar a aeronave que trazia junto a equipe e parte do equipamento do novo show.

A cantora não estava convencida de que a equipe havia convencido os fãs de que ela estaria em outro vôo, num avião mais discreto, descendo num aeroporto maior, do outro lado da cidade.

- Olha, é o senador Micron — um jornalista apontou e quase foi derrubado pelos outros, que avançaram também sobre a pequena comitiva que aguardava a delegação francesa. Gritos de Micron, Micron sobrepujaram as olas e palmas da turba que esperava Madonna descer da outra aeronave.

A cabeça do senador Micron sorriu para os flashes e desapareceu da porta do avião, por trás do impassível segurança.

Três funcionários do aeroporto empurravam a escada até a porta. O segurança decidiu deixar os funcionários trabalharem e se afastou da porta. Melhor não atrair atenção para a chegada do cônsul.

O cônsul se deixou ser calçado pela primeira camareira e enfiou as meias brancas no bolso da calça da segunda, que tentava encaixar os óculos escuros sobre uma testa mais relutante que os braços e as pernas da excelência menos embriagada do que se podia imaginar.

Marcel Firmino Assami desceu a escada ao lado da intérprete, sem precisar de apoio.

- Aquele é o novo embaixador francês.

- Cônsul.

- Isso.

- Tem nome de funcionário público.

- Tem nome de brasileiro.

- Ele é brasileiro.

- Igual o Micron?

- Micron é filho da puta.

Seguiu-se um pequeno e discreto coro de “filha da puta”, discreto, mas animado, já que o senador reeleito estava longe demais, ainda escondido atrás do agente de segurança que havia terminado de examinar a escada de metal por onde todos deceriam. O coro quase criou um incidente com os fãs que esperavam pela Madonna. Os fãs queriam avançar sobre os jornalistas, mas se contentaram com pontapés e xingamentos.

Os jornalistas se punham entre os fãs da cantora e a pequena comitiva para receber o embaixador e o senador e a pequena comitiva não esperava dividir aquela seção do aeroporto com a comitiva e os fãs da Madonna. Queriam uma chegada discreta do senador Micron e uma recepção ainda mais discreta ao novo cônsul da França. O perfil circulado pela Agência Brasileira de Inteligência era desanimador, o que se traduzia por alarmante. Certamente era alguma brincadeira mandarem um cônsul francês que nem era francês. Mas ele fala a língua? Barely, responderia o próprio cônsul Firmino se alguém da equipe o deixasse abrir a boca em público. E talvez completasse com c’est dommage.

O segurança encarregado de escoltar o senador Micron abriu caminho sobre a multidão e avançou o senador pelo corredor dedicado às pessoas que não devem ser detidas, importunadas, revistadas, questionadas nem atrasadas.

O segurança que acompanhava o cônsul não teve a mesma sorte. Ele tropeçou, tentando evitar esbarrar na perna da primeira camareira e na perna do próprio cônsul quando ambos tentavam fazer o segurança tropeçar. O segurança perdeu o equilíbrio e se apoiou na primeira camareira, o que fez a segunda camareira tropeçar e deu a oportunidade para o cônsul se apoiar na segunda camareira. Como dois casais valsando, o segurança girou abraçado à primeira camareira, e o cônsul aproveitou para repetir a coreografia e girar abraçado à segunda camareira.

E foram cercados por gritos, em português e inglês de:

- Senhor embaixador?

- Senhor cônsul?

- Uma palavrinha, por favor?

- Atende a Isto É, senhor embaixador?

- Gilberto, da revista Playboy, o que está achando do Brasil, senhor cônsul?

- Diana Prates, Folha de São Paulo, é sua primeira vez no Brasil, senhor Firmino?

- Senhor embaixador?

- O senhor veio ver a Madonna, senhor Marcel?

Antes que a equipe e a comitiva pudessem restringir a turba de jornalistas que se desprendia do grupo que ainda aguardava a Madonna, o cônsul já apertava a mão das autoridades que o recebiam e resmungava à imprensa num sotaque inventado de português lusitano e francês de filme americano.

Foram dez segundos de declarações que os funcionários do consulado lamentariam pelas semanas seguintes, e que terminaram com a frase: “E a primeira coisa que vou denunciar é a suíte financeira. Agora eu preciso ir”.

- Ele disse elite financeira?

- Suíte financeira?

- O senhor é anti-globalista, senhor embaixador?

- Vai mesmo vetar o Brasil na ONU mais uma vez?

Mas o cônsul já seguia na direção da entrada especial.

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