Do analfabetismo visual em 2023

Marcelo Ferlin
5 min readNov 14, 2023

--

The Fairburn System e seu uso nos quadrinhos.

A etiqueta nos pede para nos definirmos por frustrados e amadores. Então eu seria um quadrinista frustrado e um cineasta amador.

A verdade é que escrevi, dirigi, produzi e até editei curtas em VHS antes de entrar na ECA. Então, seria mais verdadeiro dizer que já havia me frustrado no colegial. Ainda escrevi alguns roteiros breves no tempo da Escola de Comunicação de Artes da USP, e breves exatamente porque reconhecia o tempo e o esforço necessários, algo que num país como este se soma à frustração.

Quanto a ser quadrinista, poderia dizer que sigo amador, sem tempo para a frustração. A verdade é que não tenho a verve do amador, só funciono na base da energia, sem tempo para o entusiasmo. Já escrevi argumentos, roteiros, esboços, pequenas hqs e uma série de tiras. Mas só iria em frente se houvesse recursos. E se me sentisse confortável com meu próprio traço. Sou um desenhista limitado. Não ainda frustrado.

Nada disso me qualifica para dizer o que vem a seguir: estamos cercados de analfabetos visuais.

O debate de agora sobre o prêmio Jabuti, que decidiu desclassificar as artes do livro Frankenstein, porque foram feitas com ajuda do Midjourney, é exemplo do analfabetismo visual.

Se você se sente incapaz de avaliar arte gerada ou complementada por recursos digitais, de automação, machine learning ou “inteligência artificial”, você se reconhece incompetente visual.

Aqui entra o motivo de ter discorrido sobre minhas aventuras de amador em quadrinhos e filmes. Nossa qualificação e nossa experiência não são suficientes para lidar com o todo, e com o novo. Um dos jurados, um notável de vida pública, reconheceu nas redes essa questão.

Mas o incompetente visual tem a responsabilidade de encarar o público, na maioria analfabeta visual, e lidar com a situação, e com honestidade.

Outra discussão, mas que parte da mesma questão, é a responsabilidade de uma instituição que se anuncia capaz de avaliar artes visuais, e o livro é uma arte visual, mesmo que a prevalência do texto esconda esse ponto, encare essa limitação. O candidato que fez tudo certo em seu ano, acaba de ser desclassificado porque a instituição que deveria ser capaz de avaliar o avanço do candidato decidiu ou reconheceu que este ano não tem competência para aferir esse avanço. Volte amanhã, volte ano que vem, diz a instituição ao desclassificar as artes de Frankenstein.

Há espaço aqui para outra questão: quanto a instituição do prêmio segue expondo seus jurados, como aconteceu 11 anos atrás com a polêmica do jurado C, o “crítico severo”. E mais uma questão: na década passada o susto foi o da demonstração, tida por excessiva, da competência do jurado C, o susto deste ano foi a incompetência da instituição de lidar com o limite de competência dos jurados. É como se o prêmio tivesse ido do excesso de competência para o reconhecimento da incompetência, o que sugere um esforço por calibração, o que indica que a instituição se mostra viva. Boas questões para outro texto. Vou voltar ao ponto do analfabetismo visual.

Outro exemplo de analfabetismo visual nós podemos constatar, sem qualquer carteirada da minha parte, nos perfis do Instagram. No uso canhestro de imagem e texto e na poluição visual consequente.

Nesse ponto, os usuários de hoje, inclusive profissionais e prestadores dos mais variados serviços, repetem as gracinhas visuais da imprensa no começo do uso da cor como recurso 100% presente do jornal impresso.

Quando a Folha adotou o uso cores para as fotos, o Estadão já fazia gracinhas visuais, onde “harmonizava” chamadas e fotografias: se a manchete falava do uma investigação por corrupção, a imagem era o retrato do político envolvido fazendo beiço ou em alguma careta que poderia sugerir reação, geralmente adversa, ao conteúdo da reportagem.

A imagem, que antes era informação e retrato, torna-se parte do esforço de editorializar (construir narrativa, fazer storytelling) o texto em termos da expectativa da reação do leitor. As fotos, que nunca foram neutras, agora são deliberadamente usadas como apoio retórico do texto.

Nas horas vagas, entre um trabalho e outro, costumo conferir usos e abusos das imagens e das imagens com texto nas redes. Para mim é uma experiência de ruptura ou corrupção moral, ainda mais quando gente boa e inteligente revela sua crise moral sob a forma de crise estética.

Em vez de expor usuários, prefiro a analogia: o abuso de frases incluídas numa imagem, sem preocupação ou cuidado aparente com o modo como o público vai “ler” e “compreender” o resultado. É como se a pessoa esperasse demais do texto, como se uma frase tivesse a capacidade de domar e dirigir a leitura de uma foto. Parece arrogância, mas pode ser só analfabetismo visual. Há perfis e mais perfis que repetem as gracinhas que os jornais impressos ensaiavam no começo da WWW e dos portais de notícia.

Outro exemplo óbvio, que talvez se mostrasse mais óbvio se contasse com o endosso popular de um Robert Hughes ou uma Camille Paglia, são a cultura de memes e a proximidade dela com a cultura das grandes catedrais da Europa.

Se as catedrais eram esforço de catequizar analfabetos, pela disposição espacial da arquitetura e pela sequência de vitrais e adereços sacros, é difícil não reconhecer certo paralelo. Só que agora os analfabetos são mais visuais. E os memes que sobrevivem, mesmo os Gifs de reação e pontuação do discurso, demonstram o esforço espontâneo, como os construtores anônimos das catedrais, e o aprendizado visual.

De repente a comparação é indevida. De repente é mais fácil enxergar os memes como resposta à arte da Contrarreforma, pelo teor crítico e irônico com que olhamos os memes, porque se espera que olhemos o passado com reticência e críticas. Talvez pegue mal se reconhecer como devoto analfabeto que levou um saco de areia ou ajudou a erguer uma viga numa catedral incompleta, de desígnios ainda indecifráveis, quando você está na rede usando seus memes favoritos.

Não só quero entender disso tudo, quero aprender. Ainda que não poste roteiros, vídeos próprios ou roteiros nas redes, apareço em várias para brincar com imagens e texto, e para entender como o público usa as imagens e como usam imagens com textos e às vezes enfiam um texto no meio de uma imagem.

Os thumbnails de vídeos de canais do Youtube são uma escola, ainda que por enquanto de analfabetismo. O texto em uma página só de texto, guia nosso olhar, mas imagens, mesmo quando retratam mensagens simples (como uma reação emocional do dono do canal) dizem muito mais. E reverberam de modo mais imediato que a mediação do puro texto com a mente do leitor.

Chego ao fim sem ter entrado ainda no assunto. Porque é preciso tornar visível para o leitor o tema e a situação.

Vou tentar.

--

--