Eirill DeLonge, modelo, fotógrafa/fotógrafo. Crédito da imagem: Kerem Rainbow. Difícil ver imagens de Eirill e escapar sem inspiração.

Ele, mas também ela

Marcelo Ferlin
4 min readJul 19, 2023

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Ele havia sido uma criança cheia de medo e raiva. A qualquer repreensão ou palavra dura seus olhos se enchiam de lágrimas, que os pais percebiam, e ele percebia que os pais percebiam, e ele não sabia lidar com aquilo.

Ele pensa que precisava da brincadeira, a simulação e o faz de conta, para apreender as emoções e conseguir lidar com elas. Porque essa era a terceira grande característica dele, a vontade imensa de brincar.

Perto dos dez anos de idade ele encontrou o controle emocional que parecia satisfatório, e passou a construir a personalidade a partir daí. Começou a filtrar o mundo de fora pelos recursos de dentro.

A disposição para brincar incentivou a curiosidade e a vontade de investigar o mundo. Sem perceber, ele desenvolveu a própria inteligência, sem esforço consciente. Ele não sabia que era inteligente, ouvia os elogios dos professores e até dos colegas na escola, mas não se via como inteligente.

Porque não se sentia esperto. Porque pensava que se fosse inteligente de verdade não seria surpreendido pelas situações. E, por fim, nele a inteligência estava sempre subordinada aos próprios interesses, como a memória e a atenção.

Depois dos dez, trocou a vontade de mostrar a raiva, que em criança significava mostrar os dentes numa careta que deveria impressionar os adultos e não impressionava, por um tipo de frieza, uma disposição para não ser abalado por nada, e reagir apenas com riso ou com raiva.

Ele aprendeu a sorrir o sorriso do amargo, o humor dele escorreu para o sarcasmo. A máscara perdura até hoje, décadas depois. Ele continua sem saber como reagir com as emoções. Aprendeu a se fazer presente e atento às emoções alheias. Mas prefere não estar lá, prefere não lidar com o encontro entre as emoções alheias e as próprias, quando estas afloram.

Vergonha, piedade, ternura, gratidão e ingratidão, desespero, desconfiança, desprezo, ansiedade, ele prefere a raiva ainda.

Dentro dela também há uma criança cheia de medo e cheia de raiva.

A raiva dela é fria. Tem algo de descaso, de desrespeito e afronta, mas a parte maior vem da desconfiança. Logo cedo ela percebeu que os adultos não eram confiáveis, como eles eram burros, erravam, mentiam e se enganavam. E tentavam mentir para ela e tentavam enganá-la.

Ela consentiu o quanto podia, porque era o que esperavam dela. Mas havia a parte inegociável, que resistia a toda retórica. Nenhuma palavra ou promessa eram muito dignas, não duravam muito. Só o poder, seja o grito da mãe ou a força do pai, tinha valor e merecia respeito.

Ela foi a criança que cresceu pelo confronto e pelo fechamento. Fechava-se em seu mundo. Ela não sabia ainda do mundo lá fora. Tudo era sempre mediado pela expectativa dos outros, tudo vinha contaminado pelos pensamentos que não eram os dela. E ela se ressentia disso.

Também não se via inteligente. Os outros é que eram burros.

Aos cinco ela era uma lady. A criança que todos queriam pegar no colo. Comportada, mas de opinião. Não conseguiam mantê-la no colo se não fizessem os caprichos dela, que costumavam ser concordar com ela, brincar de acordo com a vontade dela.

As brincadeiras logo escorregaram para a investigação do mundo lá fora. O quintal, com hora marcada para voltar para dentro de casa e tomar banho. A praça, tão guardada de advertências. A rua, sempre cheia de perigos.

As árvores e os insetos eram amigos dela. As aves, os gatos, os cães. Eles estavam com ela e estavam no mundo.

Nessa época os sonhos dela se aproximavam dos sonhos dele. Uma savana, a visão larga, um céu sempre ignorado mas protetor, e a correria. Às vezes com as próprias pernas e às vezes em quatro patas, como coelhos, leões, gazelas.

Não se conheciam ainda. Ela nasceu anos depois. E vivia em outro lugar.

Depois veio a escola, o refúgio para longe de casa. Nem os ciganos nem o povo das fadas vieram para levá-la embora. Então a escola teve de servir. Mas lá também todos eram mais burros que ela, mas diziam que ela que era inteligentes.

A ironia ainda era preferível ao sarcasmo. Não via sentido em trocar o que havia dentro por nenhuma promessa de fora. O tempo dela viria, se viesse. Todo o resto era secundário.

Ela e ele foram se conhecer um pouco depois. Eles foram se conhecer no espelho, através do espelho. Ela estava lá, atrás dos olhos que o refletiam. Ele era uma possibilidade impensada dela, alguém que estivera ali o tempo todo.

O toque deles era frio porque o vidro do espelho era frio. Não eram parentes, não eram namorados. Tinham estado lá, um ao lado do outro, desde sempre, mas só agora se conheciam. Eram parceiros e sócios, cúmplices.

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