Me lembrei de que não sou branco ou totalmente branco

Marcelo Ferlin
5 min readMay 1, 2015

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Tentando me passar por branco no meio do Roda-Viva.

Me ocorreu agora que não me apresentei. Prazer, Marcelo.

E daí me lembrei de que não sou branco. Não totalmente.

Talvez agora faça sentido para o leitor. Ele não é branco, por isso pensa diferente. Olha, não é bem assim. Sou quase branco e se esse argumento fizesse sentido, então eu penso quase igual.

Parte da minha família descende de italianos que vieram para cá serem quase escravos nas lavouras de São Paulo. Primeira parada, Santos. Depois, Franca. Por fim, a noroeste do Estado.

A outra parte veio do Japão, ou da mistura de Okinawa com o Japão. Minha avó paterna era de Okinawa e era professora. Meu avô paterno descende de uma família de samurais.

(Okinawa não é Japão nem quer ser, segundo o povo de Okinawa, e segundo os próprios japoneses nunca será. São mais primitivos, cultuam outros deuses, comem muito porco, bode e frutas tropicais e queimam a pele com mais facilidade. Nos mangás, o bronzeado mais forte de certas mulheres costumava ser também um comentário sexual: eram mais liberadas, eram de Okinawa ou como se fossem de lá. Quem se lembra de Karatê Kid tem uma ideia de tensão racial entre o nacionalismo deles e do nacionalismo japonês. Quem estudou a segunda guerra e leu sobre os desmandos do governo japonês provavelmente tem uma opinião formada.)

Diferentemente de outras famílias de imigrantes japoneses, meus avós faziam parte da primeira colônia de donos de terra do Estado de São Paulo. Vários imigrantes e várias famílias, antes e depois, vieram como colonos, como trabalho barato para substituir os italianos, que substituíram, em parte, a mão de obra dos africanos escravos e descendentes.

A história oficial é de que meu avô admirava muito a cultura dos Estados Unidos, e durante toda a vida foi leitor de Whitman, Emerson, Thoureau e demais transcendentalistas. E como os Estados Unidos já estava formado, meu avô decidiu vir para o Brasil, que era um país da América e que tinha futuro. E história da minha avó é que, depois de certo relacionamento desastroso e perigoso, ela decidiu se casar com o primeiro mané que cruzasse o caminho dela, que foi o violinista e autodidata, fraco de saúde e cheio de opiniões, meu avô. O resto é história. Tiveram seis filhos e entre os meninos mais novos estava o meu pai, que muitos anos depois se casou com minha mãe e tiveram três filhos. Prazer, Marcelo.

No Japão se usa o termo hafu para descrever a prole das famílias mistas. Como quase tudo por lá, é um termo depreciativo, que as gerações recentes decidiram retomar e usar com orgulho.

Por aqui, durante anos lá no interior ouvi “mestiço”, como se eu fosse um tipo de animal de duas raças cruzadas. É ofensivo, ainda que muita gente no interior tenha crescido achando que era normal ser chamado de animal.
É como hoje o uso do “japa”. Japa já não tem o tom depreciativo e racista que tinha durante a segunda guerra. A palavra era pronunciada com desprezo e ódio. Gente da idade do meu pai, filho de japoneses, nunca se esqueceu, apesar do carinho com que Sabrina Sato é chamada de “japa”. Carinho e inocência. Os tempos mudam.

Quando meus pais se casaram havia poucas famílias mistas na minha cidade. Havia a minha, havia a da Sabrina Sato, e mais algumas. Quando minha segunda irmã nasceu, a mistura das famílias era maior, e era normal.
Evito japa para japoneses, por respeito a meu pai, e evito mestiço, para os filhos de famílias como a minha, por respeito a mim.

Já me disseram, e minha namorada diz, que uso a etnia conforme me convém. Quando é melhor ser italiano, sou italiano. Quando é melhor ser japonês, sou japonês. Mas quando vim para São Paulo eu dizia que tinha cara de havaiano. São Paulo tira o bronzeado das pessoas.

Acho necessário e acho útil usar a carta da etnia a meu favor. Porque nunca fui considerado nem italiano nem japonês. Podem dizer que são das etnias mais racistas que existem, não vou negar, não vou estragar as piadas e o humor de levar tudo isso na brincadeira.

(E já ouvi todo tipo de questionamento também: mas então como você se classifica? Do que você se chama? Como descrever você? Não me classifico. Nem me descrevo. Foram outras pessoas que inventaram branco, negro, mestiço, afrodescendente, japonês, italiano. Eu não preciso me classificar, não preciso me descrever. Me chamo também de Marcelo, nisso sigo os outros.)

Lembrar de que você não é branco nem suficientemente não branco é melhor que ser lembrado, sim. A posição de outsider é solitária quando você cresce, mas é confortável depois de algum tempo.

Há um lado de respeito, de admiração e, portanto, de incompreensão e raiva contra orientais ainda hoje. Por mais aberta e acolhedora que seja a sociedade.

Por causa da profissão, eu me formei em editoração, sempre acompanhei os jornais, e acabava colecionando recortes de crimes como assalto, sequestro e latrocínio contra famílias orientais. Lembra daquele bebê colocado no colo da mãe morta e queimada? As vítimas eram uma família oriental. Os bandidos parecem acreditar que orientais nunca dizem a verdade e que se você torturar o suficiente eles revelam todas as riquezas escondidas na casa deles.

Não deve ser diferente de outros tantos de crimes contra outras etnias. Por acaso reparo nessas notícias. E reparo no grau de selvageria.

Às vezes a selvageria é pequena. Muitos orientais e descendentes reclamam de que costumam receber o troco errado. Mendigos experientes tendem a evitar orientais, porque acreditam que dão pouca ou nenhuma esmola. E embora se diga que não há mendigo oriental, eu já vi alguns nas ruas da capital. Durante anos uma mendiga passava horas sentada escrevendo num caderno na esquina da minha quadra e eu nunca me senti à vontade para invadir o espaço dela e perguntar o que ela tanto escrevia.

Meu avô mantinha diários desde antes de vir para o Japão. Alguns diários estão guardados. Quem sabe um dia esse material vá para algum museu, porque não temos condições de bancar a tradução desses diários.

Na colônia em que morava, meu avô era conhecido como o demônio.

Porque era sábio, apesar de autodidata e dado ao estudo, e dava conselhos práticos e era bondoso, e muitos vinham ouvir seus conselhos e ele era chamado para resolver conflitos e discussões, mas havia um lado sombrio nele, que era melancólico e que era também sarcástico. Meu pai conta que o pessoal da colônia, menos estudado que ele, que só era menos estudado, formalmente, que minha avó, tinha medo da risada do meu avô e dos comentários que ele soltava entre as risadas. Tinham medo do lado melancólico e do lado sarcástico.

Um dia meu avô ainda vira personagem. Há a história das duas famílias, mas acho que algumas histórias são melhores quando romanceadas.

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Marcelo Ferlin
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Written by Marcelo Ferlin

A parte KitKat deste latifúndio.

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