Moça solteira no ônibus intermunicipal

Marcelo Ferlin
2 min readOct 15, 2023

--

Variações juvenis.
Mas serve para procurar entender e quem sabe explicar por que não poucas pessoas não gostam de contos.
O texto começa aberto, podendo ser ensaístico ou crônica, mas acaba se fechando como conto, e como conto as possibilidades de desfecho são mais reduzidas e as de desfecho satisfatório me parecem bem poucas.
Há aqui certa paródia de contos de gênero, em que sempre alguém morre ou algum desfecho final, inescapável, é sugerido.

Jargões do NYT. Mas ali embaixo vamos tratar de clichês.

Moça solteira no ônibus intermunicipal

Moça de tudo, solteira. Tinha embarcado na cidade vizinha. Os gestos delicados e o olhar despreocupado, terno para com o casal de mais idade na fileira adiante, aliás, casal de muita idade, durou ainda mais meia hora depois que as luzes do ônibus se apagaram.

O senhorzinho trepou no banco e se abraçou ao encosto para não deslizar sobre a superfície impermeável do assento e conseguir enxergar direito a moça. Sorriso fixo de dentadura e olhos míopes que vasculharam tudo em volta até o fundo do ônibus para finalmente examinar a moça. Então o senhorzinho acenou, deslizou e se acomodou de novo no assento e não foi mais visto, só ouvido.

A senhorinha ainda trocou uma receita de minestra até se incomodar com o ronco do presumido marido e entender que também devia calar a boca e sentar como gente, mesmo que ainda não fosse noite.

O olhar da moça se tornou mais distante, os olhos de despreocupação ganharam os tons do desprezo. E indiferença. O misto de desprezo e indiferença com que se encaram besouros e minhocas, que logo desapareceu do rosto da moça, instantes antes de se virar na minha direção para me encarar.

Ela sorriu e meus olhos continuaram semi-cerrados, inertes até quando ela estendeu o braço para chamar minha atenção e conferir se eu dormia mesmo, e se não havia captado e compreendido a persona dela, se havia deixado cair a máscara cedo demais.

Sem brincos, sem anéis, moça bonita. Fosse eu dez anos mais velho, abria os olhos e te pedia em casamento. Fosse eu dez anos mais novo, não esperava você desvirar o corpo e se sentar bem comportada e plácida pra abrir tua garganta de ponta a ponta. Mas não sou mais jovem. Não ajo como jovem. Sei que mais alguém atrás de nós consegue me ver como eu te vejo. Então eu aguardo.

Demoro a entender que o ronco à minha frente é falso e que o desprezo da moça vem do entendimento de que eu serei a vítima. A lâmina virá lá de trás para a minha garganta, não para a dela. Meu sangue inteiro vai pro casal, menos a parte que couber a quem atrás de mim usar a lâmina. A moça, tão bonita, é indiferente e despreocupada porque sabe que seguirá viagem.

--

--