Na cidadela dos sigilos vermelhos

Marcelo Ferlin
9 min readOct 9, 2023

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Momento de pura subversão. Parece fantasia, mas também parece paródia ou crítica subversiva dos clichês de fantasia. Mas diz respeito ao momento, Outubro de 2023, de exercícios de escrita.

Na cidadela dos sigilos vermelhos

Hélio ascendeu ao campanário da cidadela no fim da tarde. Era o último candidato do exame. Do grupo, os quatro amigos de Hélio haviam passado. Não fazia ideia de qual seria o desafio. Nenhum dos seis vencedores, os quatro amigos e mais Karla e Keiko, tinha explicação para os desafios propostos para eles. E não havia como saber a lógica para os desafios dos reprovados, porque não havia nem como saber quais teriam sido os desafios.

Nem todas as construções da cidadela pertenciam de verdade ao bairro. Já do terceiro andar da escadaria aberta e sem corrimão que circunda a torre do campanário, Hélio podia conferir a muralha que demarcava as quadras que de fato pertenciam à cidadela.

O resto do bairro crescia ao redor dos muros altos, casas se espalhavam num padrão confuso até o paredão de rocha, uma única rocha sólida que protegia o promontório onde a cidadela, inicialmente um forte, foi erguida. E à direita mais casas desciam e se misturavam às casas dos bairros abaixo. Cada desnível rumo ao porto correspondia a um bairro. As construções originais da cidadela eram as mais antigas daquela cidade portuária.

Duas vezes por ano os estudantes da cidadela tinham permissão para ascender ao campanário. No início do ano, para conhecerem ou para estudarem o espaço onde, se assim decidirem, farão o exame, no meio do ano.

A partir do quinto andar a escadaria ganha um corrimão de metal. E no oitavo andar há uma entrada para a escadaria interna que leva o candidato até o décimo segundo andar, a plataforma sem teto nem paredes ou muradas onde uma vez por ano, ao longo de uma semana, ocorre o exame.

Há duas mesas e duas cadeiras de madeira e um fogão a lenha de tijolos. O fogão foi reformado para abrigar um armário também de alvenaria. O examinador tem a chave da grade de metal e através da grade os estudantes podem conferir quatro caixas de madeira e um globo com uma reprodução do mundo conhecido. Uma lenda corrente entre os estudantes e os moradores da cidadela denuncia o espaço vazio onde caberia uma alegada quinta caixa.

Cada caixa tem um tamanho distinto e o examinador diante de Hélio as enfileirou junto com o globo terrestre sobre a mesa dos examinados.

O examinador sorri. Todo examinado parece naturalmente atraído para o globo que retrata o mundo conhecido. Mas nem mesmo Anna acredita na geografia do globo. Esse é o mapa do mundo permitido, disse Nero. O mapa oficial permitido, completou Iara. Iara e Nero vinham da mesma região, como a estrutura dos nomes e o tom da pele sugeriam. Os pais de Nero haviam chegado há pouco anos, pelo porto. Já Iara veio com os pais pelo caminho entre as montanhas, subindo de bairro e bairro conforme a família prosperava.

Da maleta o examinador retirou os instrumentos que os amigos de Hélio haviam comentado. Um frasco, uma adaga, um capuz e dois pares de algemas.

Só subia ao campanário o estudante disposto a se especializar no conhecimento que há séculos mantinha o prestígio da cidadela e daquela cidade portuária, mesmo que as últimas gerações não tenham precisado daquele conhecimento. Há séculos ninguém havia encontrado um dragão. Não havia trabalho para o estudante que se especializava em matar dragões. Então, depois dos três últimos anos de estudo, depois do exame, eles se tornavam professores. Portanto, também se tornavam examinadores.

Quem não passava no exame tinha a opção honrada de se jogar do campanário em direção ao mar. Talvez sobrevivessem, e poderiam nadar para longe. Iriam para algum dos bairros abaixo da cidadela ou para outra cidade, outra região, sem mácula na nova vida. Nenhum dos amigos de Hélio acreditava que alguém poderia sobreviver à queda. Seriam mortos pelas pedras ou pelas águas que arrebentavam sobre as pedras.

A opção menos honrada dependia dos objetos que o examinador havia tirado da mala. Veneno. Uma lâmina para os pulsos. Um capuz para quem não conseguia encarar a beirada da plataforma. E algemas para quem precisasse de mais apoio.

A primeira caixa depois do globo era comprida. Ela guardava ossos e garras. Na segunda caixa havia ovos e lascas de ovos de dragão. A terceira caixa se abria ao meio e revelava uma maquete da cidadela. A quarta caixa é uma maleta de armas e ferramentas. E a última caixa guarda folhas de papel e canetas.

Rato Branco, apesar das pernas fracas, teve a caixa das armas como material de exame. Nero, o mais alto e mais forte, foi desafiado pela maquete. Kira também, o que fazia sentido. Anna teve a chance de escolher e escolheu o globo. Todos esperavam pela caixa com os ovos, parecia a opção óbvia, mas Anna, que foi a penúltima, deduziu que se nenhum dos cinco vencedores antes dela recebeu a caixa com os ovos, havia algo de suspeito. Era melhor não arriscar.

Havia três classes de cidadãos na cidadela. Funcionários, professores e estudantes. Os funcionários cuidavam da cidadela e atendiam as autoridades da cidade. Para além das aulas e dos exames, os professores costumavam viajar para outras cidades e regiões, tanto pelo tempo livre para desenvolverem suas capacidades como para representar o governo e participar de cerimônias, treinamentos e reuniões. Quando um estudante encerrava os estudos, era reconhecido como funcionário e recebia o convite para viver na cidadela ou onde quisesse. Muitos retornavam para suas famílias, para cuidar dos negócios. Só quem escolhia o exame e sobrevivia a ele se tornava professor.

Não havia idade mínima para alguém se tornar estudante da cidadela. E ela recebia a todos. Mas havia uma regra: a cidadela só aceitava como estudante quem conseguisse atravessar seus muros. Apesar das patrulhas em torno dos limites murados da cidadela real, os vigias da própria cidadela ocupavam postos de observação ao longo da muralha e guardavam os dez portões que de acesso.

Rato Branco havia ganhado o nome por ter cavado um túnel sob a muralha. Os estudantes mais ricos, com pais ou tios que descaradamente haviam subornado algum vigia, conferiam apelidos aos mais astutos e com menos recursos. Alguns apelidos viravam nomes.

Nero aproveitou uma distração de vigias durante a troca de guarda. Kira explorou a muralha até encontrar um ponto fraco. E quebrou o braço esquerdo pulando os muros. Anna usou a estratégia inicial de Hélio, a sedução. Ela se entregou a três vigias e ganhou acesso e boas recomendações.

Hélio foi apenas seviciado e chutado para longe da muralha. Então decidiu estudar como os outros adolescentes faziam para conseguir entrar. Percebeu que os mais pobres eram mantidos à distância. Os vigias erguiam lanças na direção deles, jogavam frutas podres das aléias gradeadas, cuspiam do alto da muralha. Com adolescentes que pareciam ter dinheiro a brincadeira era outra. Empurrões e puxões de cabelo. Puxavam as roupas, apalpavam, conferiam os bolsos, faziam os adolescentes ricos se respirem e, aos risos, os chutavam dos portões. Com as melhores roupas que conseguiu, Hélio empurrou dois vigias e matou o terceiro. Foi assim que ele conseguiu se tornar um estudante da cidadela.

O examinador deu uma volta na mesa e sentou diante de Hélio. Em vez de pedir para você abrir a última caixa, vamos fazer um exame oral, disse o examinador. A caixa com papéis e canetas era a mais temida. Nenhum dos cinco amigos havia discutido a possibilidade de um exame oral. Quando Hélio teve certeza de que o examinador estava desarmado, entendeu que precisava matá-lo.

Os cinco amigos queriam mais que se tornarem professores que ensinavam a matar o que há séculos ninguém mais avistava.

O seu amigo Karla não esquece a história de como você, Hélio, e a amiga em comum de vocês, a estudante Anna foram aceitos em nossa cidadela. Perdão, você e o impávido Karla não são amigos. Você é amigo só da Anna. E quem sabe de mais quantos. Todos eles passaram esta semana por aqui. Estou te entediando? Perdão, você não sabe, não sabia, não é? Você não é o primeiro da turma a ser tocado pelos vigias, isso você pode imaginar. Mas também não é o primeiro da turma a matar para ser aceito. Não é nem o primeiro estudante a tentar e conseguir.

O examinador prosseguiu:

Mas se a Anninha não contou que há força naquelas pernas, não vamos trair esse segredo. Pelo menos não eu. E você? Ninguém teve direito a escolher a segunda caixa. Nem será você. Vocês estudantes são intrometidos e fofoqueiros, não são? Nada de ovos de dragão para vocês. Karla foi o primeiro aceito. Keiko a segunda. Armas pra ele e papel. A pergunta que Keiko não precisou responder eu guardei para você, Hélio. Só que dispensamos papel e caneta. Pronto?

Hélio via o tampo da outra mesa e o céu ainda azul atrás do examinador. Gaivotas cruzavam o céu, vinham da direção do porto e pareciam rumar para o paredão de pedra. Procurava manter os olhos fixos nos olhos do examinador. Quando o examinador olhava para algum dos objetos entre eles, o olhar de Hélio acompanhava, mas não se detia, não queria ser lido nem medido. Não queria que o examinador fosse capaz de antecipar o que pretendia fazer.

É uma questão simples, Hélio. Sem ter visto um dragão vivo, sem saber com certeza como é um dragão de verdade, como você o descreveria para alguém que também nunca viu um e não tem nenhum motivo e nenhuma razão para acreditar em dragões? Se preferir, posso sentar atrás da outra mesa. Se preferir, pode ficar de pé. Temos duas horas, mas fica escuro aqui depois que o sol se põe. E se quiser aproveitar a vista, é a melhor que temos.

Hélio havia aprendido que tinha sempre todos os detalhes e pistas diante de si. Só não sabia se estava enxergando tudo. Não fazia sentido se precipitar.

Era ele ou alguns dos quatro que deveriam fazer aquela pergunta aos professores. Seria a primeira pergunta depois do exame, talvez a última. Mas haviam jurado que compartilhariam a resposta ao final dos exames, não antes, para evitar suspeitas. Sabiam desde muito que não podiam confiar em ninguém e que seria bom não confiar nem neles mesmos até o fim da semana dos exames.

Ao final da semana os vencedores eram conduzidos à capital. Retornavam à cidadela no semestre seguinte. E já não tinham mais quase nenhum contato com os estudantes, porque ficariam encerrados nos mosteiros, como eram chamados os prédios dos professores, ou ficavam hospedados em casas de portas vermelhas. Todos os estudantes tinham livre acesso a todas as construções públicas da cidadela, desde que as portas não fossem vermelhas, e eram bem-vindos às residências privadas, nos horários em que as portas não estavam marcadas com sigilos vermelhos.

Alguns sigilos indicavam a presença de professores ou profissionais de fora naquela casa. Outros indicavam que a residência já estava ocupada demais com visitantes ou que os moradores pediam privacidade. Até os vigias e os funcionários respeitavam os sigilos. E os examinadores?

Se você precisar de uma dica, Hélio, aceito um dedo em troca.

O braço do examinador se estendeu lentamente até o punhal. E quando o examinador conferiu a lâmina antes de fechar a mão sobre o punhal, Hélio decidiu o que faria. Virou a cabeça na direção do mar, no rumo das gaivotas e aguardou o examinador apresentar o punhal e relaxar.

O examinador sacou do casaco a ampulheta de areia vermelha e anunciou dez giros. Aguardou a areia assentar, girou a ampulheta e a colocou sobre a mesa entre Hélio e o punhal. Giro um, Hélio. Quer a primeira dica?

Quantos cortes pra gente empurrar a mesa mais pra lá?, Hélio perguntou. Espalmou as mãos sobre o tampo da mesa e levantou os joelhos e os pressionou contra a mesa, como se pesasse e calculasse o esforço. E por fim estendeu as mãos, como se oferecesse os punhos para o examinador.

Isso é de graça, Hélio. Mas é melhor eu recolher as caixas. E quando o examinador foi pegar de volta a ampulheta, Hélio já tinha em mãos o punhal.

Dragões, o nome dizia, eram vigias. Vigiavam e há séculos não eram mais vigiados. Podiam ter qualquer forma, era o que as várias descrições recolhidas nos livros, nos entalhes e nas gravuras sugeriam. As histórias recontadas até as primeiras lendas conhecidas confirmavam. Nas gravuras, dragões de todos os tamanhos tinham escamas, escamas como demônios e outras criaturas terríveis. Escamas verdes, escamas vermelhas. Uma visita ao campanário no começo do ano e outra no meio.

Ninguém avistava um dragão em séculos porque eles tinham outra forma. Eram feitos de construções, como as da cidadela, e de pessoas, como os vigias. Por isso sempre havia professores ocupados com o ensino de como matar dragões. Mas o examinador não podia negar nem confirmar, já havia encontrado as águas com a garganta aberta pelo punhal.

Um globo, ossos e garras, ovos, a maquete da cidadela, armas e papel para escrever. Todas as pistas estavam diante deles, de Hélio e dos quatro amigos que o esperavam. Não haveria mais portas nem segredos para eles. Nada de escamas pintadas nas portas. Nada de vigias sobre as muralhas.

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