Primeiro vi só o humor. Depois peguei a crítica contra a apropriação data. (Pro fã original, 25 de maio, estreia de Star Wars, é a data oficial, não um trocadilho que ainda por cima joga sombra, de véspera, na Batalha de Puebla.)

O poder terreno e a autonomia de menoridade ou a extensão da infância

Marcelo Ferlin
6 min readMay 13, 2023

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Ainda não sei que título dar a este texto.

Pensei em “A extensão da infância”, porque até adultos ou cada vez mais adultos parecem enredados em discussões cujo fundo é sempre “Quem vai proteger as nossas crianças?”, que é um clichê antigo, um tropos ou mesmo um “hot buttom”, aqueles temas que imediatamente despertam reação no público e são usados politicamente pelos demagogos.

E por política, quero dizer o jogo de representação e legitimização do poder, sendo poder a capacidade de forçar alguém a fazer o que não quer. Se ninguém quer ser vítima de crimes, nem todo mundo quer ceder tempo, recursos, atenção e mesmo a liberdade para construir a utopia do mundo sem crimes ou pelo menos liberar verba, que sai do nosso bolso, para comprar viaturas e armas melhores para a força policial.

Uma diferença é que agora quem pede proteção são as própria crianças, crianças com mais de 30 e 40 anos, sendo respaldas por crianças de mais de 50 e 60. Então, outro título possível seria a “autonomia da menoridade”.

Menoridade, claro, vem do velho Kant, e expressa esta percepção: a de pessoas que não conseguem ser autônomas, elas dependem de orientação e ajuda externa, como crianças, como pensamos o menor de idade.

O modelo do adulto é justamente alguém que reconhece o potencial de perigo em algo e procura lidar com o perigo e proteger os não adultos desse perigo ou desse algo. Mas essa pessoa em si se reconhece como alguém capaz de lidar com o perigo. Hoje temos não-adultos claramente se vendo como adultos e recebendo status de adulto e tentando proteger todo mundo dos perigos, como se ninguém mais fosse adulto.

A impressão, explorada no debate público e retransmitida pela sociedade, é de que hoje tudo parece problemático. Ou seja, tudo tem potencial para ser apontado como perigoso por algum extrato da sociedade com alguma legitimidade.

A diferença entre um grupo de escolares que grita que o céu está caindo e um grupo de parlamentares que decreta lockdown porque o céu estaria caindo faz a alegria da política e da imprensa modernas.

Ou seja, onde os direitos políticos estão suspensos, como “naqueles países”, essa alegria midiática é barrada, vigiada e censurada. Nestes casos, que em muito representam o nosso passado, a pessoa que detém o poder realiza seus caprichos. No mundo livre, aquele do nosso presente, os caprichos são pulverizados (o perigo é este partido, aquele juiz, tal patota da vez, não mais o tirado) e legitimados em nome da proteção das nossas crianças.

Estranhamente, essas crianças seriam nós mesmos.

Esse processo de infantilização galopa, e cada vez mais os agentes do poder ou seus representantes midiáticos e institucionais nos tratam como retardados mentais e como aleijados morais. A grande tecnologia dos anos 1930, a propaganda (campanhas em meios de massa), tornou-se a norma dos governos. Mesmo os contribuintes, o povo que financia a estrovenga governamental, acreditam na legitimidade da propaganda, acham positivo ou inócuo o Zé Gotinha, mascote das campanhas de vacinação.

É o que tem, garantem os realistas. Se essa técnica existe e se existe a tecnologia, por que não usá-la em nome do bem maior? E, afinal, já sabemos dos perigos, o mundo sobreviveu à Segunda Guerra. Somos adultos. Antes usar o Zé Gotinha para acelerar o programa de vacinação que para dar apoio a este ou aquele projeto de poder ou partido eleito.

Sei. Somos adultos. Claro. Adultos como os “adultos” que gritam todo tipo de proteção às criancinhas nas redes, da pessoa que caça palavras, imagens e atitudes “erradas” em cada música ou livro da moda às que passam o dia chamando os outros de fascistas, numa imitação dos fascistas reais do século passado.

Um terceiro título, portanto, seria “o poder terreno”, pela situação do poder espiritual neste mundo. Não há uma autoridade nos dizendo o que fazer. Não há representantes legítimos dessa autoridade. Esse vácuo de poder nos convida a assumirmos que somos, portanto, os adultos, ou que somos crianças à espera dos adultos.

Para ficar numa grande tradição ocidental: o grande saco de pancada chamado pelos iniciados de Jesus Cristo, aclamou-se, depois sonhos intranquilos da turba, pantocrator. Mas não deu instruções claras sobre o governo do mundo, só palavras doidas como “A César o que é de César”.

E o cristianismo foi puxando o fio descosturado do véu do templo desde então, repetindo na prática todos os crimes listados nos dois Testamentos: onde hebreus de renome cometeram de adultério a apedrejamento de adúlteras, assassinatos, roubos e idolatrias, os guerreiros de Cristo, ordenados, cometeram igual, no nosso mundo, com maior tecnologia e alcance. E em nome do Altíssimo, algo que vários dos criminosos da Bíblia não podiam alegar em nome dos crimes ou em defesa deles. Mas a novidade é puxarem o fio e desestabilizarem os poderes terrenos.

Toda autocracia, inclusive a teocracia cristã, é desautorizada pelas próprias palavras e ações do Cristo. Nenhuma forma de governo é legítima.

Aqui entra a humildade ou a modéstia do cínico: pelo menos do ponto de vista do alto. E enquanto formos capazes de olhar para cima e enxergar o alto.

É esse “enquanto” que está em jogo. Muitos adultos acreditam que o horizonte continua nítido. Ou “adultos”, aqueles presos à menoridade, incapazes de lidar com o mundo sem ajuda externa, acham que não existe horizonte, e por extensão acham que todos nós também precisamos de guia externo, alguém para nos dizer o que é certo e nos afastar dos perigos deste mundo.

Um modismo nem sempre lucrativo é apontar como adultos criam “adultos”, como a situação atual foi gestada pela geração anterior. É confortável, porque lógico, dizer que esta situação de crise é uma crise gerada pelas nossas elites, pelas lideranças e pelos adultos responsáveis pela condução do mundo.

Aqui entrariam outros exemplos para além do modelo cristão, de como os líderes de cada grupo cultural, alguns inclusive vítimas dos modelos cristãos, foram deixando uma bomba para as gerações seguintes e outras tensões entre pais e filhos, concretos ou espirituais. No Brasil, cujo mote é “Faça parecer Ocidente”, até as soluções sincréticas não nos protegem da sanha midiática e política do “quem vai salvar as criancinhas”.

Um mistério brasileiro, mas não do mercado, é a criação do “proibidão” num país que aboliu a censura oficial nos anos 1980 e retomou normas e ideias de censor via Constituição e, nos anos 1990, Estatuto da Criança e do Adolescente. O “proibidão” deveria se chamar “proibidinho”, mas venderia menos.

Talvez o título correto seja “o poder terreno”. Apesar da hipótese antropológica de que o Estado, a sociedade e a paz sejam tecnologias criadas pela guerra “de todos contra todos”, pelas disputas dos primeiros grupos humanos, só os mais picaretas entre nós querem insistir em enxergar o mundo como palco de conflitos perenes. Os survivalists dos anos 1970 e 1980 são um exemplo. Os estoicos das redes brasileiras são outro, assim como as modas evangélicas de dividir o mundo entre nós e os mundanos.

Há algo de P. T. Barnum, nem por isso a visão está em si errada.

A prova disso é vivermos sabendo que uma piscadela lá do alto mudaria o mundo, libertaria a gente da infantilização e da programação da TV aberta no domingo, e ao mesmo tempo nos ocupamos do mundo e da sobrevivência como se só existisse o poder terreno, só esta vida, só a gente e aqueles que amamos.

“Confia em Allah, mas amarra o teu camelo” parece eco e resposta para “A César o que é de César”.

O funk brasileiro é um exemplo de que a infantilização começa antes como negócio, oportunidade de mercado via falsificação da realidade. Mas tendemos a enxergar melhor os picaretas do segundo momento, aqueles que querem faturar depois que a infantilização foi imposta, os que vendem livros e cursos para nos salvar da infantilização.

Em defesa da posição dos adultos, volto ao clichê bíblico, a chuva cai para justos e injustos. Há quem não vê na chance de ser picareta um mandamento ou obrigação para ser picareta. Escolher não seguir um caminho, isto ainda é adulto. Nem sempre as consequências são boas.

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