Gal Costa, 1994. Crédito: Luciana Whitaker/Folhapress

O que fazer com o público terrível ninguém pergunta

Marcelo Ferlin
5 min readMay 14, 2023

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É comum e antes, três ou quatro décadas atrás, era raro textos na imprensa a respeito do “o que fazer com artistas excelentes que são ou foram pessoas horríveis” e variações de como lidar com obras “problemáticas”.

Problemático, disse no texto anterior, é código para “essa obra oferece perigo para as crianças”, mas o perigo também se estenderia aos menores de idade de todas as idades, sob a pretensão de parte do público de assumir que você e eu também somos mentalmente incapazes.

Por interessante que seja a questão, e eu mesmo acabei me deparando com decepções artísticas, a perspectiva nunca muda. Partimos da noção de que pessoas terríveis criaram obras excelentes. Ninguém se pergunta quando o problema é o público.

Minha decepção primeiro, para deixar claro que entendo a questão: certos escritores ainda vivos que admiro apoiam ou deixam de apoiar certas iniciativas, e alguns se bandearam em abaixo-assinados. E fiquei incomodado de verdade.

Pronto, agora a ladainha típica:

Não escolhemos gostar do que gostamos. E a arte lida com o gosto. Não há moralidade, ou seja, expectativa de comportamento ou prescrição de comportamento, para a arte e as obras de arte.

Arte é tão irracional como as relações de parentesco e até onde sei a relação do público com o artista é a de filiação. Assim como o pai oferece bens aos filhos e modos de dispor desses bens, também o artista dispõe de suas obras.

Você quer realmente estabelecer uma relação de amizade, de igual para igual, com seu pai? Quer se deitar com ele? E se o seu pai quiser ser seu amigão? E se seu pai quiser abusar sexualmente de você?

Faz sentido olhar para o artista, para a pessoa que produz obras essenciais para você, como um crápula abusador e sem-noção. Talvez o pior dos seres humanos. E talvez alguém que desperte desejos imorais e pensamentos perturbadores na gente.

Esse é o artista. Agora podemos nos relacionar com a obra.

Mas eu mesmo não consegui lidar dessa forma com artistas que admirava, um escritor e uma escritora que bandearam para um lado mixuruca, besta mesmo, numa questão pequena.

Da escritora, só li um livro, muito inspirador. Do escritor, li a maioria dos livros. Por malandro que eu possa tentar ser, reconheço que algo se apagou neles, perderam o brilho.

A relação com o artista se aproxima da relação com a obra, uma irracionalidade baseada na estética.

E aceito o resultado. Sei até onde vai a falcatrua. Na juventude há espaço para decisões estéticas abestalhadas, a decisão de gostar de uma arte, um estilo, um artista, porque há espaço em nós para acomodar e aprender. Também a decisão para desgostar com base em impressões e preconceitos, tipo que sem priva de obras por causa da ideologia de um autor. São burrices com consequências. O fingimento vai até onde a pessoa aguenta.

Já a extensão da infância, a ideia de enxergar perigo em tudo e todos, apresenta uma relação ainda mais equivocada com a arte.

A impressão dos críticos e das outras pessoas sensatas é de que ganha força uma noção prescritiva, ou seja, moralista, diante da obra e do artista.

Mas não há condições sanitárias a priori a a respeito do fenômeno estético. É infantil qualquer expectativa moral diante da arte, pelo menos em termos prescritivos, de como nos deveríamos comportar e de como obra e artista deveriam se comportar.

Há quem duvide, e são infantis e ingênuos. A prova disso é a literatura, onde a informação a respeito de um autor é mediada pelos agentes do mercado editorial. Autores que eram mulheres, autoras que assinavam como homem, autores cuja história se perdeu. É como se a aposta mais segura fosse imprimir obras sem nome, atribuídas a pseudônimos ou a anônimos. E quando isso vende é isso que as editoras fazem.

Ou seja, as pessoas que esperam moralidade das artes são pessoas que defendem ter menos informação a respeito do autor. Essa é diferença entre um poema de um autor anônimo do século X e o poema de um autor moderno que pode ser um ex-presidente, um espancador de mulher, um traficante ou alguém que publica bobagens nas redes. O poema do autor anônimo está mais bem protegido, mesmo que esse anonimato seja uma ficção completa, forjada pelo mercado editorial.

Quem espera boas obras de bons cidadãos e acha que existem obras e artistas “problemáticos”, está no fundo defendendo a burrice e a ignorância. Está pedindo para ser enganado ainda mais pelos agentes do mercado ou do universo das artes.

Se eu não tivesse ficado sabendo das atitudes do escritor e da escritora que eu admiro, minha admiração teria permanecido intacta. Mas agora perdi uma ilusão, essa perda dói. Mas voltei ao ponto em que, como acontece com outros artistas e outras obras que admiro, não consigo deixar de enxergar que não são pessoas que prestam como achei que prestavam. Voltei ao meu ponto de partida: vamos tomar o artista como aquele seu tio bolinador dos primos e primas pequenas, o assaltante, o político escroto, alguém que não merece a menor confiança.

A questão do público terrível não é retórica. Acho que todo mundo vive isso quando você, admirador de uma banda, encontra os fãs, e descobre como tanta gente babaca gosta das mesmas músicas que você gosta.

Nem preciso dizer que isso afeta a relação do ouvinte com a música. Fora das artes, a frase “Jesus é até ok, o problema mesmo são os fãs”.

Seguimos esperando atitudes racionais dos apreciadores desta arte ou daquele artista, exatamente porque sabemos dos componente irracionais da arte. Mas e o artista?

A internet me apresentou a vários artistas que produzem para si e para os seus, sem vontade nem expectativa de expôr ao público suas obras. Gente que escreve e não publica, por mais que seja bom e o texto tenha valor.

Outras artes impõem um cabresto maior. Cineasta que depende de milhões de dólares alheios precisa policiar o próprio Twitter. E existe a expectativa de que não pode revidar em público contra o público, por pior que seja este público. Aqui a Realpolitik ou mesquinharia da pobreza já resolveu: artista que pode chorar de tristeza às margens do Sena tem mais é que se foder.

Mas o cínico pergunta: se é assim, então existem faixas de preço ou de valor para a moralidade pública das artes. Como funciona?

O cinismo estraga o jogo. Pelo menos o cínico pequeno, brejeiro, pouco urbano. Ninguém quer dar o preço correto nem revelar “o nome do teu sócio”.

A diversão maior, e talvez a última, de quem observa a infantilização do nosso mundo é observar o cinismo, a ironia e a venalidade de quem surfa essa onda de burrice compulsória.

Não espero moralidade das artes, mas há algum limite moral contra a burrice?

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